Muita gente no meu lugar preferia ser
feliz, eu quero apenas sentir. A felicidade deve encontrar-se, no máximo, a
cinco segundos de acontecer.
Três dioptrias separam-me da felicidade de
gozar da beleza da mulher que passa na estrada, 15,5 Khertz de um acufeno
impedem-me a felicidade de gozar o silêncio circundante e falta o teu metro e
67 para eu gozar da tua companhia nesta varanda.
Sou apenas quase feliz, não corro o risco
de um clímax castrador.
Não acredito em muita coisa mas as poucas
coisas que tenho como certas, aprendi-as por acreditar em alguém, porém, soam
todos os alarmes do meu ceticismo quando uma pessoa diz despudoradamente que é
muito feliz. Estando eu em conformidade com o lugar onde estou, estando eu de
acordo com o que me rodeia, sinto esse equilíbrio como a coisa mais
gratificante que se pode ter.
Os ambientes são para mim como um vestuário
que se vai fazendo ao corpo. Há sítios à minha medida e sítios que me não
assentam bem. Este lugar no meio da serra ainda não me assenta bem. Ainda não
sou daqui, sou de Coimbra, mas foram precisos 31 anos e 17 dias para eu ser de
Coimbra e deixar de ser de Aguim. Deixei de ser de Aguim no exato momento em
que vi a nova capela de S. José. Eram cinco e vinte e três da tarde. Nesse
momento fiquei sem referências. Os amantes precisam de referências comuns. Os
familiares também. E os amigos. De que falaríamos, sem referências comuns?
Agora, eu e Aguim ainda temos uma relação afetiva forte, mas não temos assunto
para grandes conversas.
Aquilo a que chamam o "espírito do
lugar" é a modelação do nosso sentimento às coisas que nos rodeiam. Se nos
ausentarmos e voltarmos anos mais tarde nunca encontramos o que deixámos, o
tempo profana a relação de familiaridade com o cenário; a ausência torna-nos
estranhos àquilo que apenas existe na nossa memória. A nossa terra não é aquela
em que vivemos, mas a que vive em nós.
Se ser feliz é estar plenamente satisfeito,
viver plenamente é estar constantemente insatisfeito; qualquer bêbado sabe
isso.
Pouco depois de acabar o beijo, acaba o
prazer; o segundo já não dá o mesmo prazer que o primeiro; e ainda bem, porque
a humanidade há muito se teria extinguido se o prazer do beijo fosse cem por
cento saciante.
Cultivo a insaciedade como um sádico que
leva a tortura a noventa e nove por cento, para poder continuar a fazer sofrer
sem matar a vítima.
É por isso que o livro repousa espalmado,
com as páginas 76 e 77 sobre a tua cadeira, aguardando, para que se me não
esgote o prazer da leitura, e também porque gosto de estar sem fazer nada,
quase tanto como de ler.
Fazer coisas entretém; mata-se o tempo. Só
a ociosidade não mata o tempo, cada segundo é um segundo de vida. Estou vivendo
intensamente agora mesmo, aqui nesta varanda, ociosamente tiquetaqueando o
tempo.
O pecado da preguiça é um pecado virtuoso.
Na verdade, é um pecado que quando praticado com grande frequência chega a
impedir que tenhamos força de vontade suficiente para praticar os restantes.
É preciso ter a paciência das árvores. É
preciso deixar que os frutos aconteçam ao ritmo das estações do ano. Dividir o
tempo em frações mais pequenas foi o maior disparate da humanidade. Cada vez
dividimos em parcelas mais pequenas a nossa vida. Os nossos relógios marcam
tarefas ao segundo. A precisão é a escravidão do século XXI. Eu quero a
velocidade de uma árvore a gerar um fruto, eu quero a maravilhosa imprecisão da
Natureza.
Ver a Natureza a acontecer é das coisas
mais emocionantes que há.
De Aguim via a serra do Bussaco, de Coimbra
via o Vale de Canas, daqui vejo um laranjal e uma plantação de abóboras. Uma
mulher cava na plantação de abóboras a 686 metros e oitenta centímetros de mim,
porque o som está atrasado exatamente dois segundos em relação ao golpe da
enxada e estão 20 ° de temperatura. E porque é de desprezar a velocidade da
luz. É pena não saber a humidade do ar, para ser mais preciso.
A mulher cava a terra fazendo lembrar um
filme com a banda sonora dessincronizada. E o Sol começa a esboçar um poente.
Não existe nem ordem nem estética na
natureza, só no espírito e na obra humana. O “Campo de Trigo sob Nuvens de
Tempestade” de Van Gogh é belo, a paisagem que lhe serviu de modelo, no
entanto, era apenas o resultado aleatório dos acidentes naturais, da interação
ecológica e das condições atmosféricas.
Pensar que uma paisagem é bela dá sentido à
paisagem. O nosso cérebro não está tão preocupado com a ordem das coisas como
com o seu significado, só tende a por as coisas em ordem para as perceber
melhor. Damos ordem às coisas que não têm ordem nenhuma, porque não concebemos
que elas não tenham um propósito, que estejam ali por mero acaso e que sejam
absolutamente inúteis. Não concebemos que não estejam lá por nós.
Para além de ser um exercício de estética,
a arte não serve para nada, é um luxo do intelecto. Exceto, é claro, que uma
vez recriadas por nós, as coisas passam a ter significado; são finalmente o
resultado de um propósito. É essa transfiguração que eu acho bela.
Calcular esse propósito primeiro, para
executar uma obra depois, isto é, criar segundo uma fórmula, é inverter o
processo; é por isso que a arte Kitsch desagrada a algumas pessoas. É como
fazer sexo com um manual de instruções na mão. É fazer batota para conseguir
uma performance medíocre.
São dezanove e vinte e oito, e passou um
pássaro. Agrada-me que os pássaros não passem a horas certas. Gosto de ser
surpreendido. Ser surpreendido é ser privado das referências; de certo modo,
portanto, agrada-me que tenham substituído a velha capelinha de S. José por um
exemplo particularmente orgulhoso de arquitetura kitsch. A arte kitsch tem essa
virtude; surpreende-nos sempre pelo orgulho da própria mediocridade.
Daqui a pouco o Sol vai transformar o céu,
e um número de pessoas que me é impossível calcular vai maravilhar-se se olhar
para Poente, embora um pôr-do-sol não seja lindo nem feio, é como é porque a
luz azul é mais refratável que a vermelha.
Gosto disso, porque a beleza que existe
neste mundo está cem por cento dentro de nós. Os mais exigentes e
perfeccionistas, portanto, têm menos beleza dentro de si. Segundo este cálculo,
a nova capela de S. José é mais bonita que a anterior porque tem mais gente que
gosta dela e com um conceito de beleza mais abrangente.
Existe um muito maior consenso quanto a
referir a beleza de uma paisagem ou de um corpo de mulher do que de uma obra de
arte, porque chamamos belo ao que nos agrada e dispõe bem, e a beleza de uma
obra de arte pouco tem a ver com a boa disposição com que ficamos depois de a
apreciarmos, ou só por masoquismo assistiríamos a uma peça trágica ou
apreciaríamos o fresco de Goya “Saturno Devorando um Filho”. É isso que explica
o consenso em torno da penalização da pedofilia e simultaneamente a aceitação
de obras como "Lolita" e "Morte em Veneza".
Uma obra de arte tem uma beleza intrínseca.
O rosto tosco e enrugado da Madre Teresa de
Calcutá, enquanto modelo de um retrato, é esteticamente mais rico e
interessante do que o rosto sensual e viçoso da Marilyn Monroe.
É arte uma bela execução de algo que pode
ser feio, mas nunca uma feia execução seja do que for.
Mas ter exigências de beleza mais
abrangentes e tolerantes, ou, portanto, ter mais beleza dentro de nós, de modo
a gostar de mais coisas é só promiscuidade estética. Para gostar de uma coisa é
preciso ter educação; quase ninguém gosta da primeira cerveja que experimenta,
é preciso educar o palato. É como gostar de alguém; porque gostar de alguém é
eleger quem tem merecimento. Trata-se portanto de saber fazer seleções.
Escolher entre uma zurrapa e um bom vinho
exige educação; quase nenhum bêbado sabe isso mas um escanção sabe. A arte é
elitista, o gosto popular como a justiça popular, sem educação, são dois
grandes equívocos civilizacionais, e não podem ser desculpados com a
democracia, porque não há democracia sem informação.
A tarde ficou húmida e se calhar vai
chover. O tempo que o som da enxada demora a chegar até mim deve por isso ter
diminuído. Um número indeterminado de pássaros passou por aqui. Uma incerteza
muito grande domina tudo em redor.
As coisas precisas e previsíveis podem dar
um falso sentido de segurança; eu prefiro pensar que tudo pode acontecer e que
tenho uma grande margem de manobra. Posso ter um plano de ação, mas assim que
parto para a ação esqueço o plano. Ou não seja eu um velho soldado português
que na guerra tinha sempre à mão uma arma e uma máquina fotográfica, e que
disparava a máquina fotográfica nos momentos de maior perigo.
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