23.6.16

A grande filarmónica

O pé descalço não lhe tirava dignidade nenhuma ao porte altivo de chefe de orquestra. De vez em quando olhava para trás para ver se nós o seguíamos alinhados, e corrigia os tresmalhados com o olhar reprovador, sem nunca deixar de marcar o compasso. Quando chegava, a banda que o seguia era invisível e todos os sons eram mais afinados. Aparecia no largo da Capela com um dolcissimo, quase em bicos de pés, as mãos delicadas como asas de inseto, mas já entrava na rua da Portela com ar altivo e passo marcial, num andante com brio, e mais ou menos a meio do percurso, usualmente ganhava a intensidade dramática de um allegro maestoso, que culminava invariavelmente num grande finale: ratatá, ra-ta-tá, ra-ta-tá, txim pom!
Nesta altura, fazia um pequeno silêncio enquanto desentorpecia os dedos tamborilando o ar de braços abertos.
Quando se preparava para iniciar um novo andamento, já era seguido por um considerável bando de putos empunhando saxofones de troço de couve, trompetes de flor de jarro e arcos de violino de empa de vinha, aguardando que a sua batuta de vareta de chapéu-de-chuva batesse três vezes na estante da partitura imaginária.
A fanfarra ia crescendo em número, à medida que percorria a rua da Portela, e ao chegar ao largo do Sobreirinho era já uma grande orquestra que se agrupava em cima do corpo cilíndrico do poço da bomba de água transformado em coreto.
As pessoas passavam sem espanto, habituadas àqueles arraiais, concedendo, quando muito, um breve sorriso ou um comentário de circunstância, porque, por assim dizer, o Armando da Antes era já uma vedeta muito popular.
Quando o Armando da Antes decidia continuar o seu desfile, nós seguíamo-lo de novo, parando a uma ou outra porta para ele fazer o seu peditório de alguma côdea de boroa ou rabo de peixe frito, que guardava numa sacola esfiampada a tiracolo, ou alguma moedinha de tostão que ia juntando no único bolso que não estaria roto, para poder pagar o copito de zurrapa que lhe aviariam na loja do Sr. Boanerges, antes de ele abalar em direção à Antes. E partia sozinho, devido à deserção dos músicos, cansados com uma performance de uma tarde inteira pelas ruas tortuosas de Aguim, mas sobretudo porque não conseguíamos manter a fantasia por tanto tempo como ele. E agora, afinado consigo mesmo, conduzindo a sua orquestra imaginária, ouvíamo-lo desaparecendo num sfumato lento pela ladeira do Barreiro abaixo.
Quem se lembra do Armando da Antes?
Sempre imaginei que o Armando da Antes era feliz comparando a exuberância da sua figura com o ar de néscia bonomia do Abílio, um ar de tímido contentamento de menino pobre que crescera demasiado. Ele alimentava, apesar disso, uma fantasia aparentemente mais compensadora. Ele fantasiava um namoro promíscuo com todas as mulheres de Aguim. Ao Abílio não lhe bastava a côdea e o rabo de peixe, - E a pinguita e a pinguita? No final da esmola e depois de atualizar as notícias e os mexericos com que pagava o que lhe davam, perguntava sempre à dona-de-casa: - Quando é? Quando é? E elas numa ternura tolerante respondiam sempre: - É quando tu quiseres Abílio. E ele: - Quinta-feira, quinta-feira!
O Abílio tinha um encontro marcado com todas as mulheres de Aguim para quinta-feira. Uma quinta-feira imaginária e inatingível, o que, pelo menos, lhe garantia uma fantasia interminável.
Na rua, caminhava meio trôpego gritando de vez em quando: - Inda no bieram! Nunca soubemos quem tardava ao encontro, quem sabe, talvez fossem as noivas da sua fantasia.
Às vezes ganhava uma roupa nova, que ele transformava imediatamente em roupa de mendigo, mal a colocava em cima. - Cais das calças a baixo! Cais das calças a baixo! Só as crianças o incomodavam. E ele a atirar-lhes pedras, porque era criança também; só que crescera demais. Talvez as crianças vissem nele o perigo de nunca se deixar de ser criança.
- Inda no bieram! Dizia ele, nunca se soube porquê. Um dia eles bieram mesmo! Eles vieram e levaram o Abílio para onde não houvesse necessidade de mendigar nos últimos anos de vida, para onde não houvesse crianças com medo de ficarem crianças para sempre.
Ouvi dizer que não transformava o pijama em roupa de mendigo. Ouvi dizer que já não dizia - Inda no bieram! Ouvi dizer que perdera até o ar de tímido contentamento.
Nunca mais trouxe os últimos mexericos da semana, nunca mais: - Quando é, quando é? Nunca mais: - Quinta-feira, quinta-feira!
Quem se lembra do Abílio?
Até hoje, em Aguim, deixaram de batizar as crianças com esse nome, um nome estigmatizado para sempre, apesar de já ninguém saber porquê.
Uma vez vi o Armando da Antes e o Abílio juntos. Duas fantasias diferentes e aparentemente incompatíveis interagindo.
A tarde era de Outono, numa altura em que as cores e os cheiros predominantes em Aguim transmitiam uma calma de fim de jornada, como se algo turbulento e cansativo tivesse finalmente serenado e todas as coisas se preparassem para um descanso prolongado.
Sentados no rebate da porta da capelinha de S. José.
Não fossem as roupas de mendigo, os pés descalços e as calças invariavelmente curtas para a perna, e pareceriam dois homens de negócios parlamentando com civilidade.
Gestos assertivos, rostos circunspectos, posturas comedidas.
Que mundo de ilusão assim se realiza, que universo íntimo e intransitivo existe na mente de um homem, que se abre e descodifica mal depara com o afeto fraternal de um ser com a sua conformação?
Dois seres proscritos pelos que julgam entender muito mais do mundo e julgam estar muito mais perto da realidade, unidos na sua marginalidade.
Afinal é sempre tão pequena a diferença entre todos nós que parece impossível não nos entendermos tão bem como o Abílio e o Armando da Antes, ao menos quando ficamos a sós com os nossos problemas comuns. Mas seria preciso abandonarmos as demenciais fantasias de poder e de domínio, de ostentação e de autoapologia.
Sentemo-nos no rebate de uma capelinha num dia em que as cores e os cheiros do Outono pareçam convidar a um repouso prolongado, condenemos à permanência no mundo das verdades adquiridas aqueles que se gabam de nos expulsar dele, e os instrumentos que tocarmos não serão jamais troços de couve nem empas de vinha e não seguiremos nenhum lunático, mas o mais competente regente de orquestra.
Ou, suprema felicidade, que os instrumentos continuem a ser esses, mas que um dia olhemos para trás e sejamos nós mesmos a corrigir apenas com o olhar reprovador o músico desalinhado da formação em parada da nossa grande filarmónica. E que seja essa a única ascendência sobre os outros a que tenhamos direito.


Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódiosaqui.

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