12.1.13

José Adelino Guerra, um homem com visão


Escrito segundo a convenção ortográfica anterior à reforma de 1990

Quando um dos nossos tombava sentíamo-nos culpados, porque éramos iguais perante a morte e tivemos o privilégio de sobreviver. Morríamos um pouco também, porque diminuía para nós a esperança de vida.
Quem nunca combateu e não precisou dos seus camaradas para sobreviver, dificilmente entende isto, quem nunca tingiu as mãos com o sangue dos seus pares para os socorrer, ou pelo menos para estar presente até ao fim, seguramente não entende isto. E a verdade é que eu também já me tinha esquecido disto há muito, mas ontem essa culpa atingiu-me em cheio, como se eu tivesse descurado um perigo que me cabia prever, como se eu tivesse tomado uma decisão que redundou em desastre. Como se o meu camarada José Guerra tivesse sido morto em combate e eu tivesse chegado tarde demais para o defender. 
E ali estava a imagem há muito esquecida do companheiro caído, a sua arma para lutar contra a hostilidade do mundo caída ao lado dele, inútil. Inútil já, a bengala branca, como um risco florescente na obscuridade da tarde avançada. Inútil como todas as armas deixadas cair pelos que caiem lutando; que ele caiu lutando. Porque a cada passo que dava se opunha à cruel indiferença dos que dão por adquirido o que para alguns é o resultado de uma luta sem tréguas. 
E no último passo que deu, um muro projectado para fingir segurança e cumprir não sei que desígnios estéticos, interrompeu essa vida de luta, de coragem, de humildade solidária que o levava a colocar-se sempre depois dos outros para receber e à frente de todos para dar. 
Mas quem caiu naquele precipício foi apenas o homem; que a sua obra continua. É que à medida que tombam os nossos companheiros de combate, diminui de facto a nossa esperança de vida, mas aumenta a camaradagem dos restantes, a interajuda e a amizade. E agora, mais unidos, damos mais valor uns aos outros; mais decididos, mais conscientes de que a ausência do Guerra tem de ser compensada pela lição de coragem que nos deixou. 
Depois do sentimento de culpa, veio o instinto de retaliação, a vontade de punir o culpado. Ainda senti a mão a fugir-me para a arma, uma arma há tantos anos esquecida, uma arma já tantas vezes amaldiçoada. Mas não se luta com uma G3 contra a insensibilidade humana, contra o desprezo cruel dos que projectam, constroem e mantêm estas armadilhas arquitectónicas como minas antipessoais colocadas à saída do trabalho de um cidadão. 
Parece que estou a ouvi-lo dizer no seu tom comedido mas levemente douto: – Combater a indiferença não é o trabalho de uma vida, é o trabalho de gerações.
Quantas vezes passei por aquele muro? Quantas vezes me senti inseguro à sua beira? Qual foi a minha contribuição para evitar aquele desastre? Como posso pensar em retaliação se agi como todos os que tinham responsabilidades e nada fizeram?
– A luta pela indiferença tem de ser feita pela positiva, conquistando simpatias, atitudes e vontades. Tem de ser feita despertando consciências em vez de despertar sentimentos de culpa. – Dizia ele. E pensar nestas suas palavras deixou-me mais aliviado.
Uma comunidade onde a soberania deixou de pertencer ao cidadão para passar a pertencer à empresa, uma comunidade em que os pobres pagam as dívidas dos ricos, em que os que andam mais rápido passam à frente dos que têm mobilidade reduzida, em que os lugares para deficientes nos parques de estacionamento são ocupados por quem não tem deficiência nenhuma, a não ser a ignóbil deficiência de falta de escrúpulos; uma comunidade assim deixa-nos por vezes à beira da raiva. E eu: – Amanhã trago um papel a dizer: ”Espero que um dia você já tenha direito a estacionar aqui.” E ele sempre mais razoável: – Fica melhor: “Espero que você nunca tenha direito a estacionar aqui.”
Às vezes, eu cedia ao meu senso de humor de gosto duvidoso e exagerava a sensualidade das mulheres que passavam por nós, para o provocar; e ele sem se deixar enganar, sem abandonar a atitude de lutador e sem desmanchar o senso de humor: – Num mundo justo, o que tu vês, eu deveria poder apalpar.
Quando falava dos seus projectos, com o seu ar modesto, eles pareciam sempre insignificantes, mas quando metia mãos à obra é que víamos o que ele vira antes de nós. Dava a ideia que ia sempre um passo à nossa frente.
Porém, as suas dúvidas eram grandiosas, como acontece com os sábios. Um dia, ao regressarmos da piscina: – Se fossemos todos cegos, será que a humanidade teria descoberto a luz?
E as estrelas sobre Santa Clara brilhavam na noite, impotentes para lhe responder.
Estas coisas passaram-me pela cabeça como um filme acelerado enquanto olhava o seu corpo caído, que um muro construído como uma armadilha fez precipitar num abismo, em vez de o proteger.
E o soldado que acordou em mim foi desaparecendo devagar, dando lugar ao companheiro de trabalho e de lazer que de repente fica sem parceiro, ao amigo impotente perante uma crueldade esmagadora.
As pessoas por distracção ainda hão-de falar dele no presente do indicativo durante algum tempo, e só depois, a pouco e pouco, passarão a usar definitivamente o pretérito, à medida que o tempo criar distância e a expectativa de o ver chegar der lugar à saudade.
Entretanto, talvez consigamos que se reconstrua aquele muro a tempo de evitar mais tragédias, talvez descubramos outras armadilhas destas antes de provocarem vítimas; talvez, se formos capazes de pensar como o meu amigo Guerra: – O nosso conceito de conforto tem que ser colectivo e tem que ser concebido a pensar nos que têm menos conforto.
Obrigado Guerra por teres partilhado este mundo comigo, a tua visão da vida e a tua amizade tornaram-me uma pessoa melhor.
Agora, descansa em paz, nós havemos de aguentar isto.

Versão áudio para deficientes visuais, AQUI.