8.1.12

Ana, vítima de guerra



"And I am not frightened of dying, any time will do, I Don't mind.
Why should I be frightened of dying?
There's no reason for it, you've gotta go sometime."

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Ana Rute disse-me que não é feliz.
A primeira reação íntima que tive foi a de não acreditar no
que me disse.
Uma jovem mulher de 26 anos, com um curso de enfermagem,
senhora de uma vivacidade a que o seu belo rosto empresta um inegável encanto,
olhando-me de frente e como se estivesse a falar de algo que toda a gente
deveria saber, diz-me que não é feliz.
Ana Rute é vítima da Guerra Colonial.
Quando a Ana nasceu já a guerra tinha acabado há muito, e
por isso, nenhum tiro, nenhum estilhaço, nenhum horror da guerra a pode ter
atingido, e no entanto a Ana é infeliz por causa da guerra.
Mas ela sabe o que são tiros, ela sabe o que são estilhaços,
e o que ela mais sabe é o que são os horrores da guerra.
Já sentiu o medo, já sentiu a ansiedade, já ouviu os gritos,
já acordou a meio da noite em sobressalto, já teve que se proteger para não ser
abatida, mas nunca fugiu. A Ana continua no seu posto tão contrariada como
todos os soldados que se veem obrigados a ficar no seu posto quanto todos
fogem.
Foi-lhe roubada a juventude como a todos os combatentes. Foi
adiando um relacionamento sério, porque um dever que lhe foi imposto não lhe
deixa espaço para os afetos. E hoje ao falar disso, parece um veterano a
queixar-se que às vezes a chamavam de maluca por deixar transparecer os seus
traumas.
Sim, a Ana Rute tem traumas de guerra. Traumas a que nenhuma
junta médica reconhecerá qualquer nexo de causalidade com o serviço militar e
muito menos com o teatro de guerra.
O estado, que tem dificuldade em aceitar que os seus
combatentes, que foram recrutados, mobilizados e massacrados no açougue da
guerra, sejam condignamente reconhecidos como vítimas desse processo todo e portadores de sequelas geradoras
de sofrimento, concedendo-lhes o estatuto de DFA, jamais aceitaria sequer a
hipótese de olhar a Ana como uma vítima também.
E no entanto, a Ana fez durante anos o que o estado deveria
ter feito. O que alguém deveria ter feito, mas ninguém fez: tratar do seu pai.
O seu pai tem 16 dos 17 sintomas que se usam para
diagnosticar a Perturbação Pós-Stress Traumático, em que 5 seriam suficientes
para um diagnóstico seguro, e a Ana tem sido vítima de todos esses sintomas.
A violência verbal e física em torno de si, a deserção, um a
um de todos os familiares, primeiro a mãe e depois os irmãos; e por fim,
indefesa, sozinha, convivendo dia e noite com a Guerra Colonial debaixo do
mesmo teto.
Os colegas da escola que lhe diziam que ela era maluca como
o pai e se afastavam. Uma professora que lhe disse em frente de todos que ela
não deveria poder frequentar a sua aula porque era filha de um combatente
maluco e era maluca também; a quem a Ana moveu um processo que resultou numa
simples chamada de atenção à professora e numa
reprovação para si, conforme tinha sido ameaçada. Os rapazes que se afastavam
dela com medo do pai. As festas a que não foi. O atraso na conclusão do curso
de enfermagem, o que
contribuiu para que agora não arranje colocação. E uma vida afetiva que foi
impossível paginar com este verdadeiro serviço de campanha numa missão pouco
menos que impossível.
Quando ela saiu do gabinete onde a recebi vieram-me à cabeça
as palavras que uma visitante do Facebook me enviou. "Não vives demasiado
no passado? Não devias procurar coisas alegres e esquecer a guerra?"
Ana Rute, uma jovem mulher que deveria viver nesse meu
futuro, onde supostamente haveria coisas alegres para procurar. E que me diz
que não é feliz, como eu digo que não sou alentejano: um facto indiscutível,
que toda a gente já sabe. Uma coisa que se diz embora se saiba que é óbvia e
consensual.
Mas a Ana não anda em busca de piedade ou de comiseração,
anda em busca de justiça e reconhecimento. Para o seu pai. Que ela, como todos
os lutadores, sabe que se se fizer justiça sairá recompensada.
O pai precisa de cuidados médicos especializados que não tem
por falta de dinheiro. Precisa de medicamentos que às vezes não compra por
falta de dinheiro, precisa de algum conforto para si
e para ela, que não obtém por falta de
dinheiro. É isso mesmo: tudo por falta de dinheiro.
E há coisas que a Ana não entende: se os médicos são
unânimes em afirmar que o pai sofre de uma doença que se apanha na guerra, como
podem as autoridades médicas militares dizerem que essa doença não tem relação
nenhuma, nem com a guerra onde ele combateu e que trouxe para casa, nem sequer
com o serviço militar? Eu bem tento explicar que se trata de um problema
processual, uma coisa burocrática, que o que é preciso é delinear uma
estratégia para tentar desenovelar isto tudo, mas a verdade é que também não
entendo.
Ana Rute é vítima da Guerra Colonial. Um dano colateral, um
dano diferido, mas uma vítima. E eu que deveria olhar mais para o presente do
que para o passado, em busca de coisas alegres, segundo a minha visitante do
Facebook, fico com a impressão que ganhei o dia, porque alguém me olhou nos
olhos com a coragem dos heróis e me disse: "Não sou feliz." Não como
um lamento, também não como se fosse eu a dizer que não sou alentejano. Não.
Foi uma declaração de quem se conhece e sabe o que quer. De quem está em guerra
e não vai baixar as armas. De quem está habituada a deixar pelo caminho os
desertores e os cobardes e que olha de frente as pessoas com quem lida para
saber se pode contar com elas.
Ana Rute, nós somos uma associação de combatentes, de sobreviventes,
de camaradas que depois da guerra ter acabado escolhemos continuar nela, porque
outros não conseguem sair dela; que conseguimos ainda assim ser felizes, pelo
menos alguns de nós, e continuar combatendo.
Enquanto houver uma jovem que nos diga que não é feliz por causa da
Guerra Colonial, nós também não esqueceremos esse passado de pesadelo, para ir em busca da fácil alegria do presente, e também não baixaremos as armas. Cada drama de um só de nós será um drama de todos. E a Ana Rute é um de nós.
Publicado no jornal Elo da ADFA

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