10.11.11

Encontros e desencontros


Neve
Não hei de amar a neve que há de cair amanhã. Haveria de amar vê-la cair contigo a meu lado. Nada neste mundo é belo ou feio, é apenas mundo. A beleza está em eu poder dizer-te isto enquanto a neve cai.

Janela
Passo à tua porta.
A tua janela entreaberta. A luz coada pela cortina. Entre a janela e a parede um risco nítido de luz. Às vezes, a luz quase se apaga porque a tua sombra se projeta na janela.
Passo à tua porta.
A solidão é uma noite com a tua janela inacessível e a tua sombra nela. Entre essa sombra e eu há um espaço vazio, um infinito sideral, a irreversibilidade de um momento já passado.
Passo à tua porta…
Agora que conheço o teu quarto, a tua janela já não tem mistério nenhum.

Miragem
Não há um tempo para nós. Não há um lugar para nós. Somos duas metades de duas peças diferentes que nenhuma oportunidade unirá. Cada um de nós é o sonho do outro, mas na vigília é que sabemos o quanto dói entender a impossibilidade de ser feliz e ter imaginação.
Mas é por isso que o nosso amor é perfeito. Nada pode pôr fim de facto ao que ainda não começou senão em desejo.
Se nos tivéssemos amado livremente e saciado os nossos corpos famintos, que fome nos restaria para nos continuarmos amando? Que outros caminhos tomaríamos nesta busca incessante pela miragem a que pusemos o nome de felicidade?
Os amores bem sucedidos morrem lentamente, como a tarde morre no crepúsculo, sofrendo em cinzento com a saudade do dia colorido.

Despojos
Sinto claramente que cheguei tarde. Tens um ar de fim de festa, como se já tivesses gasto todo o champanhe e agora estivesses a água mineral para a ressaca.
As tuas palavras são de náufraga e as tuas roupas, pousadas no corpo com negligência, criam em mim a imagem de despojos de uma batalha abandonados à pilhagem.
Tentas um sorriso que morre antes de se ver, e não te ocorre uma única palavra que possa salvar este encontro.
Há, no entanto, nesse teu desalinho, uma poesia crepuscular, uma beleza sobreviva que comove, como o sol em certas tardes dramáticas de outono a oferecer a última reserva de calor.
Sinto claramente que cheguei tarde, ou então, não soubeste esperar por mim.

Bipolaridade
Tudo é uma coisa e o seu contrário. Tudo vale pela sua presença, tanto quanto pela sua ausência. Crescemos sucumbindo ao prazer, mas é superando a dor que somos grandes.
Desgraça e fortuna, amor e ódio, derrota e vitória fazem-nos de igual modo viver intensamente, e, nesse ganho de intensidade, é que crescemos para além da mera cápsula de gozo a que nos reduz a monótona fiada de prazeres que parece ser a promessa de felicidade.
É por isso, percebes? …que distante, estás às vezes mais perto que as pessoas que chocam comigo no passeio.
É por isso, percebes?

Ternura
Ele ajeitou duas farripas de cabelo sobre a calvície, e constatou o insucesso no espelho da pala do carro, enquanto um vulto volumoso de mulher atravessava a rua na sua direção.
Ela olhou de relance a sua própria imagem na parede de vidro do Hotel, conformada com a sua silhueta elefantíaca.
Da esplanada do café alguns olhares medem-lhe o volume do corpo e nem sonham a menina frágil que ali vai. Um coração delicado em busca de um pouco de ternura e prazer.
Ele sai do carro, numa agilidade precária. O coração bate a descompasso, mas não é uma arritmia, é um coração de adolescente antecipando a aventura.
Sorriem.
Que pintor conceberia um quadro onde aqueles dois corpos fossem o símbolo da paixão? E no entanto daqui a pouco, no quarto do hotel, esgrimirão todos os gestos do prazer. Mas depois, exaustos, vão olhar a descompostura dos seus corpos nus sobre a roupa em desalinho, sem o adorno da beleza, e um enjoo tomará conta do resto da tarde.
Ao separarem-se de novo, um relance de ternura promete uma futura redenção do prazer. Mas ela passa junto à parede de vidro do Hotel olhando para o outro lado, e ele recolhe a pala do sol antes de entrar no carro.

Poesia
A minha avó vinha aqui à travessa da rua da loja consultar o Sr. Augusto enfermeiro. O Sr. Augusto enfermeiro era na verdade o médico da aldeia. Eu esperava sentado no chão empedrado da travessa da rua da loja, que fazia as vezes de sala de espera, e achei o livro. Não era grande o livro. Parecia um pequeno taco de madeira suja, de folhas grossas.
"Não faças teu o que não é teu" era o aforismo da minha mãe para que procurasse sempre o dono das coisas que encontrasse e assim perdesse o prazer da descoberta e os favores da fortuna.
Guardei o livro com o gozo de quem lança mão de um furto e todas as noites o olhava secretamente, tentando interpretar as manchas de tinta que sabia chamarem-se letras.
Fui entendendo o que estava escrito à velocidade com que fui aprendendo a ler. Letra a letra, palavra a palavra.
Mas um conjunto de palavras não é um texto, como um conjunto de ramos não é uma árvore. Tem sempre que haver um tronco comum para que as palavras façam sentido. Esse tronco demorou tanto a aparecer que as palavras ficaram soltas na minha memória antes de lhes ter captado o sentido.
As palavras bailavam na minha mente. Não eram uma história, eram um bailado de palavras.
Tenho hoje a certeza: a poesia nasceu em mim, muito antes de eu saber ler.

Vazio
Nunca vi partir um vapor de um cais pela neblina da manhã, onde viajasses, para ir ter com o homem da tua vida enquanto eu ficasse, de cabelo escorrido pela morrinha matinal, olhando as insignificâncias do ancoradouro para não sentir o vácuo que o vapor ia deixando no meu peito, à medida que se afastava.
Nunca vi partir um vapor, porque deixaram de existir antes de eu ter nascido, sinto apenas esta saudade, como se tivesse a memória de ter visto partir um, contigo lá dentro. Partires de uma estação de caminho de ferro no TGV, não seria a mesma coisa; a rapidez tira drama à vida. E até os amores impossíveis precisam de um tempo certo, e, vermos afastar-se um vapor numa manhã de nevoeiro, enquanto a morrinha matinal nos escorra o cabelo, a acentuar o desgosto, é ainda mais doloroso que ver-te partir, porque partires é algo teoricamente reversível; e uma esperança, embora tão ténue e efémera como o fumo do vapor que a morrinha dissolve antes de chegar a mim, ficaria a unir-nos; porém, ver um vapor afastar-se lentamente, quando já não existem a não ser no nosso imaginário, é mais do que doloroso, é simbolicamente doloroso, o que quer dizer que será a conjunção de todas as dores dentro de mim e não apenas a dor de te perder.
A dor de ver-te partir teria ao menos o conforto de ser o reverso de um momento hipoteticamente feliz que, pelo menos na minha memória, ainda persistiria para preencher o vazio que iria crescendo com o tempo e com a distância.
Mas para preencher este vazio não há anverso desta dor, porque não há vapor, nem partida...
Nem tu.

Indignados
Ganhaste direito a escolher, mas não a escolher os que te tiram esse direito; que ao tirarem-to, no-lo tiram a todos. A liberdade é um conceito biunívoco, sistémico e inalienável; quem a use para a destruir perde-lhe o direito, ainda que constitua a maioria.
Chegou a altura de te dizer isto, porque a tua desistência da liberdade começa a ameaçar a nossa.

Metáforas
O que quer que haja de corsa em cada passo que dás, o que quer que haja de gaivota no modo como dizes "Vamos?", o que quer que haja no que quer que seja em ti, não explica nada do que sinto.
Não há uma boa metáfora para o teu encanto.

Milagre
Era de vagar que falávamos:
– Desde quando, mãe?
– Desde que senti o teu coração bater pela primeira vez.
– E como era isso?
– Era um milagre.
– E nunca perdeste a esperança?
– Muita vez.
– E depois?
– E depois a esperança nascia de novo, como quando senti o teu coração pela primeira vez.
(Era de amor que falávamos.)

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Manuel Bastos

A análise que faz da vida, das pessoas e das situações, é tão verdadeiramente analítica, tão inteligente e sábia, que assusta.
Você amigo, é um raio x.

Os meus parabéns!

Um abraço da

Felismina

x disse...

Parabéns, Manuel Bastos

Por estas inteligentes e sábias palavras, e pelo envolvente testemunho que deixou ontem na Faculdade de Economia da UC.

Obrigada,

Antea Gomes